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Reflexões literárias: O Gato Preto



Edgar Allan Poe foi um escritor americano, nascido no século XIX, para ser mais exato, em 19 de janeiro de 1809, em Boston, Massachusetts. Hoje é reconhecido por praticamente inventar o gênero ficção policial, e por dar grandes contribuições à ficção científica. Seus contos, sobretudo, os que aqui serão resenhados, são conhecidos por um horror psicológico e trazem uma característica que está presente na mentalidade do indivíduo da contemporaneidade, de uma certa contemporaneidade, a vergonha do medo e da superstição e o credo na razão, na explicação racional, mesmo diante de fatos (no momento ou à primeira vista) inexplicáveis. 


O Gato Preto 
[Contém Spoilers]
 
Um narrador-protagonista se apresenta em mais um conto de Edgar Allan Poe, dessa vez em O Gato Preto. A narrativa trata-se apenas de memórias, um relato sobre um horrível passado que ainda amedronta o narrador pelo ar quase sobrenatural da série de horríveis acontecimentos. É inserida em cena a questão do álcool, que se faz presente na história a partir do momento que o alcoolismo passa a modificar a personalidade do personagem. Antes de sua decadência ele era doce e amante de animais, tanto que obteve vários com sua esposa. Agora, não passa de um alcoólatra, irritável, sombrio e apático, pelos animais e pela própria mulher.
Dentre os animais que criara um se destacou, Pluto, um gato, enorme e de pelo todo preto. A trama gira em torno do que poderíamos chamar a maldição de Pluto. O Narrador, motivado por ódio e álcool, mata Pluto, enforca-o. Degenera-se em sentimentos negativos. Um outro gato aparece, quase idêntico, mas com uma marca de enforcamento nos pelos do pescoço, e o narrador, na tentativa de mata-lo mata a esposa. Na tentativa de esconder seu corpo, o gato o denuncia. A polícia vem e já indo embora ouve um grito de horror. Não poderia vir de alguém vivo, pois a mulher certamente havia morrido. O grito era do gato que reaparece para finalizar a trama. Lá estava ele, atrás da parede, anunciando às autoridades onde estava o corpo, dando fim a narrativa cercada de infelizes acontecimentos. 
Como dito de início, o horror toma conta do narrador. Menos pelas suas atrocidades, mais pelos sucessivos acontecimentos que levam a crer no sobrenatural, levam a crer que Pluto tinha algo de sobrenatural, levam a crer numa certa maldição de Pluto. Contudo, a história, assim como as outras, nada tem de sobrenatural, de modo que não rompe em momento algum com o pensamento racional da contemporaneidade, o pensamento que até sente medo do fantasmagórico em uma situação específica, mas em outra situação, tem certeza da naturalidade e racionalidade dos acontecimentos e da inexistência do sobrenatural. O próprio narrador, no início da narrativa expõe que

[...] talvez, algum intelecto haverá de surgir para reduzir minha fantasmagórica ao lugar-comum [...] perceberá, nas circustâncias por mim detalhadas com assombro, nada mais do que uma ordinária sucessão de causa e efeitos perfeitamente naturais. [POE, Edgar. Contos de imaginação e mistério. Editora Tordsilhas. Kindle e-book. posição 1145]

Já superamos o sobrenatural, não é mesmo? Em nosso consciente já o desacreditamos, mesmo que em nosso íntimo domine o medo, a consciência nos tranquiliza que é apenas a nossa própria mente tentando nos pregar uma peça. Coincidências improváveis acontecem o tempo inteiro e são nada mais, nada menos que coincidências.  Portanto, deixemos um pouco de lado esse gato maldito, essa obsessão por identificar o irracional não parece ser útil para esta reflexão. Vamos dialogar com esse narrador, com sua perigosa e decadente trajetória. Do doce e amante dos animais, ao ranzinza e violento narrador. O que aconteceu em sua vida? Ao que parece, absolutamente nada, tanto é, que este narrador sequer se da ao trabalho de justificar sua mudança de comportamento. Era apenas a própria vida sendo tão desafiante e degradante quanto ela é. Deixando feridas e marcas. Apagando lentamente o brilho do nosso olhar. Diminuindo gradativamente o foco da nossa visão. Nos deixando loucos, cegos e ranzinzas. A inércia da vida faz isso conosco. Nos empurra para obsessões e ilusões. Nos faz enxergar apenas dentes, quando há uma amável, mas doente, Berenice. Nos faz enxergar apenas uma maldito felino, quando há na verdade, uma dedicada esposa esperando a cada instante o retorno do doce marido. Não deixe que a inércia e a loucura da vida te cegue como fez com estes narradores. Viva, mas não deixe que a vida tome conta das suas decisões e ações, pois assim sendo, eventualmente renegará ao que lhe resta de sanidade, bondade e identidade, estará enforcando o seu próprio Pluto, ao mesmo tempo que a si mesmo. Só lhe restará a loucura, a prisão, a depressão ou a morte.
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