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Reflexões literárias: Manuscrito encontrado numa garrafa

Edgar Allan Poe foi um escritor americano, nascido no século XIX, para ser mais exato, em 19 de janeiro de 1809, em Boston, Massachusetts. Hoje é reconhecido por praticamente inventar o gênero ficção policial, e por dar grandes contribuições à ficção científica. Seus contos, sobretudo, os cinco que aqui serão resenhados, são conhecidos por um horror psicológico e dão margem para uma reflexão sobre uma característica presente na mentalidade do indivíduo da contemporaneidade, de uma certa contemporaneidade, por vezes a nossa. Trata-se da vergonha do medo e da superstição e o credo na razão, na explicação racional, mesmo diante de fatos (no momento ou a primeira vista) inexplicáveis.

Manuscrito encontrado numa garrafa
                                        [contém spoilers]

Comecemos neste conto, pois ele me inquieta. Ele não se encaixa na ordem discursiva dos outros quatros que serão publicados nas próximas semanas, que por sua vez, se encaixam no que pude perceber como reflexo ou representação de parte da mentalidade ou mesmo de uma certa concepção de verdade da contemporaneidade.
Manuscrito encontrado numa garrafa trata de uma narrativa exposta por um narrador-protagonista que se encontra no ano de 18(1718,1818?) em um navio, como passageiro, rumo as ilhas Java. Em meio a uma tempestade, o navio se perde, os tripulantes morrem, e o narrador é jogado pelas ondas, em um navio muito maior na confusão. Tenta se esconder, mas percebe não ser necessário, pois os homens, cujos os rostos não conseguem reconhecer, sequer o notam, mesmo que ele seja um completo estranho a tripulação, visto que a ela não pertence, mesmo que ele passe diante dos seus olhos. Daí em diante ele passa a tentar compreender o que se passa, onde está, que tipo de estrutura o carrega, que tipo de gente o leva e para onde, e percebe, para um abismo. A narrativa, ao que parece, seria sobre um navio fantasma. Onde se encontra então a racionalidade presente nos outros contos? Como eu disse, este conto me inquietou. Percebi apenas algumas elucidações. Primeiro, a vontade de verdade se faz presente e a uma busca por uma explicação racional. Não há ruptura com relação a ideia da contemporaneidade, talvez a diferença seja que tal perspectiva só não esteja tão evidente e que no fim, as respostas não fiquem muito claras. Prova disso, é que por mais inacreditáveis e sem solução racional sejam os fatos narrados, no início da narrativa, o próprio narrador-personagem já expõe a sua tradição cética, pirrorista, de modo que este indivíduo estaria pouco inclinado à superstição. O próprio narrador ao expor essas informações sobre sua forma de pensar, explica
Julguei apropriado postular tudo isso de antemão ou de outro modo a incrível história que tenho para contar seria considerada antes a demência de uma imaginação desabrida do que a experiência positiva de uma mente para qual as quimeras da fantasia têm constituido letra morta e nulidade. [POE, Edgar. Contos de imaginação e mistério. Editora Tordsilhas. Kindle e-book. posição 965]
Ou seja, se justifica, para tentar garantir a veracidade da narrativa posteriormente descrita. Para que não considerassem tal história como descrita a partir da demência, para que não houvesse a partilha da verdade e da loucura e o discurso se tornasse nulo. O que novamente volta a ser inquietante, pois por mais que haja a busca pela verdade, não há uma explicação racional para os fatos extraordinários narrados. Resta ao leitor, apenas a dúvida e a inquietude.

Se aprisionando por vontade própria em um complexo discurso de ceticismo e racionalidade, diante do irracional, do inexplicável, o contemporâneo se desorienta. Considera seu próprio julgamento como loucura, a realidade em si, mera ilusão de sua própria mente, ou quem sabe, apenas uma mentira, ficção. O indivíduo aprisionado em sua própria concepção do que é real,  perde-se em si mesmo.

Espero não ter decepcionado, caro leitor. Não espere de mim um crítico literário, um estudioso da vida e obra de Edgar Allan Poe. Espere de mim, o mesmo de ti, apenas um leitor, que diante de uma leitura, encontra nela, reflexos do seu próprio pensamento, por mais anacrônico que isso possa ser. Espere então, apenas profundas reflexões, baseadas menos na obra e em seu autor, e muito mais, na experiência de leitura. Reflexões literárias, é isto que vos espera.
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