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A Medida do Caos


          Na mitologia egípcia, quando você está face a face com Anubis, o deus da morte, ele coloca o seu coração no prato de uma balança, onde era pesado contra uma pena, e se a verdade das suas ações fosse comprovada (seu coração mais leve que a pena), você iria para o "paraíso".
          Toda vez que vou escrever sobre um sentimento com o qual estou lidando ou do qual já me livrei, há um momento de hesitação. Esse momento é descrito por mim como incômodo. Ele vem em vários graus de inconveniência, desde o mais ameno — dèjá vu — até ao mais grave, que eu gosto de chamar de flagra.
          Quando ocorre o dèjá vu, é algo interessante e estressante ao mesmo tempo. Creio que mencionei a vantagem da memória processada como aprendizado, porém o problema é o resultado oposto: a impossibilidade da experiência devido a dor ainda presente. Deixe-me ser mais prática: em uma dessas saídas da vida, com amigos e namorado, algo ativa [triggers] uma memória enterrada cujas consequências ainda pairam sobre minha vida. Se antes eu estava calada e ouvinte, agora me encontro falante e completamente irresponsável pelo meu sarcasmo, e vice-versa. Este caso é incrivelmente leve referente aos outros graus de incômodo. Veja bem, se uma súbita mudança de comportamento provocada por um comentário ou um lugar, qual é o pior resultado? [In]felizmente obtive essa resposta três vezes na minha vida.
          O flagra, que é o meu nêmesis psíquico, foi chamado assim por causa daquelas cenas de filmes de ação, onde o espião é pego na discordância de fatos e no momento que isso ocorreu tomou ciência do fato. O que vem a seguir é a eliminação de vazamento, ou seja, impedir que aquele que possui conhecimento deste infiltrado seja aniquilado ou subornado o mais depressa possível. Eu acho esta comparação bastante promissora e surpreendentemente apurada, com somente uma diferença: a única espionagem presente é exercida pelo eu.
          O "estar comprometido", ter a validade vencida, o ser dispensável é mais comum do que se imagina. Arrancamos partes de nós mesmos em esperança de crescer melhor, tal como podamos uma árvore. O problema óbvio é que não somos árvores [you don't say]. O que quero dizer é que não somos simples. Não conseguimos obter essa simplicidade pelo querer, pelo desejo, pelo pseudo-estudioso que afirma que pode tacar um dane-se no mundo e pronto. Queiramos ou não, nós criamos raízes, inventamos lugares favoritos de frequentar, idealizamos pessoas com quem queremos sair, conversas que podemos ter.
          Neste evidente alerta, tudo é ameaça: uma simples mudança de rotina, um atraso de cinco minutos, uma conversa não terminada de dois dias atrás. O ponto é que... não há argumentos contra esta situação. Nenhuma tipo de conforto é creditado ao pensar "eu já estive pior". Eventualmente virá a situação que rearranjará fatos e teremos que reavaliar o uso de "nunca" e "sempre". Esse tipo de estado emocional/mental é irremediável, mas é dormente.
          Talvez eu esteja sendo um pouco radical. Talvez o motivo por detrás de ataques de agonia sejam medíocres e superficiais. Mas então, outra questão seria levantada: o que é muita dor? O que é olhar a dor do próximo e pensar "isso não é nada comparado ao que EU passei"? Usamos esta palavra com facilidade, mas o significado real, o âmago desta manchete em negrito é puramente pessoal. Eu posso ficar aqui e dizer tudo o que você deve fazer e o que deve evitar baseado na minha experiência ou na história tocante de algum vídeo no Youtube, mas o conceito das facetas a vir é extremamente necessário que seja formado sozinho. Cada um exerce sua personalidade como o respirar: automático. Mas o caráter, a ação em exercício independente da teoria... este sim podemos moldar. Sentar num banco de uma praça e avaliar interesses, pesar acontecimentos, encarar os próximos pedaços a ser podados. Como mencionei antes, nada disso é simples. Não se resolve em um dia, não desaparece em uma semana... mas cresce dentro de si por um tempo e é decidido em um segundo.
          Seja lá qual for seu objetivo, tudo começa com um pensamento, um incômodo, um valor, e assim como meu flagra pessoal, meu contínuo desalinho com o mundo ao redor, ainda assim eu quero mudar. Colocar em equilíbrio todos esses pesos, saber o que vai ser pesado demais pra mim e o que vale a pena carregar. Com isso em mente, sei que posso, enquanto viver, mudar de ideia, retomar antigos projetos, reconquistar minha própria simplicidade. Em meio a isso, apenas espero ser leve o suficiente, para que, no fim, o peso de meu coração não me denuncie.
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