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MAIS 1 XÍCARA DE DYLAN



Bob Dylan em uma lanchonete em Massachusetts, foto de Ken Regan, 1975.



Ele, um outsider, acreditava ter encontrado seu porto em uma cigana de “respiração doce” e “olhos como duas joias no céu”, mas a cigana vivia na mira de um pai dominador, rígido, um “foragido da lei” que supervisionava tudo ao seu redor como a um reino. Os cabelos dela, macios, cobrindo o travesseiro, surgiam como uma miragem no deserto quando ele estava sentado naquele café, curvado, sorvendo o amargor da bebida e a amargura da impossibilidade de viver seu romance, mas repetia para si que não sentia por ela “gratidão ou amor”, pois a lealdade dela não era para ele, mas para “as estrelas do céu”. Talvez conseguisse ler o futuro na borra como fazia a bela cigana, a mãe e a irmã. Olhou o fundo da xícara, pressentiu a saudade em seu caminho, em seu vale. Então levantou o braço, chamou o garçom e pediu "mais um café para a estrada". 

A cena faz referência à música One More Cup of Coffee (Valley Below) de Bob Dylan, presente no disco Desire de 1976. A quarta música do lado A do disco nos transporta a uma atmosfera mística e cigana, por meio da letra e da sonoridade. Nela, se juntam acordes do violino de Scarlet Rivera, a voz anasalada de Dylan, juntamente com a voz de Emmylous Harris. De acordo com um texto de Allen Ginsberg, encontrado na contracapa do disco, a música remete a uma sonoridade hebraica, algo nunca ouvido antes nos Estados Unidos da América. Além da versão do álbum de 1976, a música aparece em uma gravação dos shows da turnê Rolling Thunder Revue, em 1975, em uma apresentação na cidade de Inglewood, na Califórnia, em 1978, e no álbum Live at Budokan, Tóquio, Japão, 1979. Regravada inúmeras vezes, tem uma aclamada versão feita pelo grupo The White Stripes, lançada em 1999 no álbum de estreia da dupla.


Capa do disco Desire de 1976, pela gravadora CBS (Columbia Broadcasting System). Foto de Ken Regan.


Na capa do disco, Dylan usa um chapéu e um cachecol. O cantor também aparece com os cabelos na altura do ombro, diferente das vestimentas que usava em períodos anteriores. Na fase de "Desire" Dylan tinha incorporado ao seu visual os casacos, as penas, medalhões, lenços, cachecóis. O visual remetia a um andarilho gypsy. A foto é de autoria de Ken Regan, que acompanhou Dylan durante a produção do disco e da turnê que veio depois. O encarte todo do LP remete a esta atmosfera de misticismo, a arte conta com figuras de cartas de Tarô e Buda. Além de One More Cup of Coffee, o disco apresenta outras canções de destaque como Hurricane. Música que pretendia denunciar a injustiça social cometida contra Rubin “Hurricane” Carter, um boxeador acusado de um assassinato e que teria sido preso injustamente em 1967. A inspiração veio após a leitura da biografia de Carter. O disco teve grande aceitação, foi produzido por Don De Vito. Na lista de instrumentos da gravação foram utilizados violino, acordeom e bandolim.  No disco, Dylan aliou suas percepções particulares, introspectivas, não esquecendo a preocupação com os direitos civis. Décadas anteriores, o cantor foi acusado de traidor por ter ido além da esfera do Folk. Em 1962, quando gravou seu primeiro disco, o cantor ficou conhecido pelo teor de protesto de suas canções, a sonoridade era inspirada em cantores como Woody Guthrie. Em seguida mudou a proposta de suas composições, ligando-se aos temas da Geração beat. Voltou-se a temas mais pessoais, como a liberdade, desapego e amores perdidos, além disso, passou a utilizar instrumentos elétricos nas performances, aproximando-se do Rock. Segundo Roszack, Dylan passou a explorar suas qualidades sensitivas e perceptivas, deixando de lado as preocupações políticas (ROSZACK, 1981, p.78).  Desire era o resultado de um Dylan que conecta as duas percepções. No verso do LP existe um poema de Dylan para apresentar o álbum. Mas não é apenas a canção e o encarte do LP, o que veio depois, a turnê Rolling Thunder Revue, remetia a um mesmo cenário idílico.

O que teria impulsionado a produção do disco? Existem algumas suposições. A questão é que antes de tudo, em 1975, Dylan passou uma temporada na França. Estava enfrentando uma crise em seu casamento com Sara Dylan. Em seu retiro, teve contato com um festival anual que reúne ciganos do mundo inteiro que acompanham a procissão de Santa Sara. O ritual ocorre no final do mês de maio na região de Les Saintes Maries de La Mer, em Provence, França. A inspiração para a composição de One More Cup of Coffee teria ligação com esse contato cultural que Dylan teve na França. Como a música trata de um desencontro amoroso, alguns cogitam a possibilidade de ter sido uma metáfora que Dylan criou inspirado em seu casamento, que não estava bem. É importante também relacionar a música com as ideias e as imagens que circulavam na época. A década de 1970 foi também culturalmente marcada pelo misticismo, pela mistura da cultura nômade e oriental, culturas alternativas que se apresentavam em meio a um cenário contracultural, opositor ao tecnicismo vigente, período marcado também pelo movimento hippie. (ROSZAK, 1972: 7-83).

Apaixonado pelas culturas de povos nômades, como os ciganos e os beduínos (homens que andam em caravana pelo deserto), Dylan teve a ideia, ao retornar a Nova York, de reunir amigos e colegas, músicos, poetas e pessoas ligadas a outras artes para gravar um disco e depois criar uma turnê inusitada. O lugar mais propício era o bairro Greenwich Village, ruas que serviram para o florescer da contracultura e da música Folk (ALMEIDA, 2007). O bairro era também local bem conhecido do cantor. Lá, Dylan juntou-se a Jacques Levy, para compor as músicas do disco e entrou em contato com outros músicos, alguns também ele havia acabado de conhecer, como a violinista Scarlet Rivera, que encontrou andando pelas ruas do bairro.


Bob Dylan na turnê Rolling Thunder Revue, foto de Ken Regan, 1975.


A turnê Rolling Thunder Revue se assemelhava mais a uma trupe circense. Os shows eram longuíssimos, duravam até 4 horas, mas as apresentações eram alternadas entre os artistas. Participaram da turnê Joni Mitchell, Joan Baez, Roger McGuinn, Ramblin' Jack Elliott, Kinky Friedman e Bob Neuwirth. Neuwirth agrupou os músicos T-Bone Burnett, Mick Ronson, David Mansfield, e Steven Soles. Também participaram o baixista Rob Stoner, e o baterista Howie Wyeth. Por volta de 70 pessoas estiveram envolvidas na turnê. O próprio Dylan mudou seu comportamento no palco, ele trocou as performances mais intimistas por uma postura mais alegórica e performática. Dylan também passou a pintar o seu rosto de branco, remetendo a Commedia dell´arte. A turnê ainda rendeu um filme, Renaldo e Clara. Dylan fez o papel de Renaldo, Baez foi “a mulher de branco”, Sara, então esposa de Dylan, apesar da crise do casamento que finalizou em 1977, participou do filme fazendo o papel de uma prostituta de nome Clara. Houve até quem fez o papel de Dylan, Ronnie Hawkins. Entre as cenas está o encontro de Dylan e Ginsberg no túmulo de Kerouac. A turnê também foi registrada em disco, Hard Rain de 1976.


Bob Dylan na turnê Rolling Thunder Revue, foto de Ken Regan, 1975.


A música de 1975 em que Dylan pede “mais uma xícara de café para a estrada”, metáfora ou não para sua esposa, acabou tornando-se uma homenagem a um estilo nômade de vida. Dylan une café e estrada. O café é elemento místico utilizado inclusive para a leitura do futuro pelos ciganos. A estrada presente na música, elemento caro ao Blues, possui uma carga simbólica que conecta Dylan a Kerouac. Vale lembrar as homenagens que o cantor fez ao autor de On the Road. A obra de Kerouac publicada em 1957 influenciou o comportamento da juventude na contracultura. Na música, como em outras tantas que citam a estrada, Bob Dylan toma para si os contornos desses espaços de fluxo. A estrada é o lugar do perder-se e do encontrar-se, lugar de andanças e reflexões, um local sagrado, espiritual. Um lugar para percorrer depois de “mais uma xícara de café”.



One More Cup of Coffee, vídeo da turnê Rolling Thunder Revue, 1975.





Versão do The White Stripes, 1999.



One More Cup of Coffee

Your Breath is sweet, your eyes are like
Two jewels in the sky
Your back is straight your hair is smooth
On the pillow where you lie.
But I don't sense affection
No gratitude or love.
Your loyalty is not me but to the stars above

Chourus :
One more cup of coffee for the road.
One more cup of coffee for I go,
To the valley below.

Your daddy he's an outlaw
And a wanderer by trade.
He'll teach you how to pick an choose
And how to throw the blade.
And he oversees his kingdom
So no stranger does intrude.
His voice it trembles as he calls out
For another plate of food

Chorus:
One more cup of coffee for the road.
One more cup of coffee for I go,
To the valley below.

Your sister sees the future
Like your momma and yourself.
You've never learned to read or write
There's no books upon your shelf.
And your pleasure know no limits
Your voice is like a meadow larks.
But your heart is like an ocean
Mysterious and dark.

Chorus:
One more cup of coffee for the road.
One more cup of coffee for I go,
To the valley below.



Referências:

ALMEIDA, Marcos Abreu Leitão de. Uma Geração em Debate: Beats ou Beatniks? . Revista História Agora: revista de História do Tempo Presente. Março de 2007. Disponível em: http://www.historiagora.com/hist%C3%B3ria-agora-n%C2%BA1/5/8-uma-geracao-em-debate-beats-ou-beatniks-marcos-abreu-leitao-de-almeida. Acesso em 05.08.2014.

DYLANESCO.COM. Rolling Thunder Revue: a caravana cigana de Bob Dylan & Cia. Disponível em: http://dylanesco.com/rolling-thunder-revue-a-caravana-cigana-de-bob-dylan-cia/. Acesso em 25.06.2015.

EPSTEIN, Daniel Mark. A Balada de Bob Dylan: um retrato musical. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editora, 2012.

ROSZAK, Theodore. A Contracultura: reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil. Petrópolis: Editora Vozes, 1972.

ROSZAK, Theodore. El Nacimiento de Una Contracultura: reflexiones sobre La sociedad tecnocrática y su oposición juvenil. Barcelona: Editorial Kairós, 1981.




  


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