Durante algumas
décadas uma lenda assombrou o imaginário da população natalense, a lenda da
Viúva Machado. Muitos acreditavam que a viúva seria uma espécie de papa-figo, um ser já presente na cultura
popular e conhecido por comer o fígado de crianças. O medo da viúva se espalhou
pela cidade e perturbou o sono de muitas crianças. O que poucos conhecem é a mulher por trás da narrativa fantasiosa, e que a
lenda se refere a aspectos culturais e históricos em relação ao ser mulher na
Natal do início do século XX.
A
construção da lenda da Viúva Machado foi projetada em uma mulher que se tornou
famosa na Cidade do Natal, principalmente após o casamento, em 1904, com um
rico comerciante português, Manoel Duarte Machado. Seu nome era Amélia Duarte
Machado (1881-1981), uma típica dama da elite natalense. Durante as três
décadas de casamento, Amélia contribuiu para a boa imagem do seu marido promovendo
jantares para homens de negócio e figuras ilustres. Manoel Machado era já um
bem sucedido comerciante, dono de muitas terras e comerciante de nome,
proprietário da Dispensa Natalense. Incentivador da aviação ele teria feito a
doação de terras para a construção do primeiro campo de pouso de aviões da
cidade, área que depois foi utilizada para a construção do campo de pouso de
Parnamirim, importante durante a participação de Natal na Segunda Guerra
Mundial.
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Amélia, fotografia de Argemiro Lima, 1978, (SEREJO, 1978) |
Após a morte de seu
marido, em 1934, e após ter tomado as rédeas dos negócios do falecido, Amélia
passou a ser vista com suspeitas diante da sociedade natalense. Era uma mulher
forte, viúva, sem filhos, após os mais de dez abortos que sofreu. Nasceu a
Viúva Machado, um ser que a oralidade deu forma e fama. Além desses aspectos, a
casa de Amélia, localizada ao lado da Igreja do Rosário dos Pretos, passou a
ser afetada também pela lenda. Alguns evitavam passar pelo local ou desviavam o
caminho, outros sentiam calafrios ao vislumbrar a arquitetura pomposa do
palacete ornamentado com gradil e estátuas, provenientes da França e estilo Art Nouveau,
prédio construído em 1910, quando a cidade passava por um processo de
modernização e tinha cidades com Paris como referência estética e cultural. A
fama da Viúva Machado era tão intensa que rendeu uma entrevista em 1978, ao
Jornalista Vicente Serejo, na entrevista que foi publicada em O Poti,
veículo de grande circulação na cidade, a viúva falou publicamente pela
primeira vez sobre os boatos acerca de sua pessoa. O texto tem a intenção de
apresentar uma mulher reservada, mas uma mulher sensível e bondosa,
diferente da imagem que muitos faziam. Na matéria, Amélia abriu também as portas de sua residência, permitindo a realização de
fotografias suas e da belíssima casa.
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Fotografia da casa de Amélia Duarte Machado, foto de 2010 (MEDEIROS, p. 110, 2014).
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Existem muitas
suposições acerca da construção da lenda da Viúva Machado, mas é importante
situar a lenda no espaço e no tempo. Os ideais de sociedade burguesa reservavam
para as mulheres a esfera privada. As mulheres eram educadas para tornarem-se boas
esposas, e para acompanhar seus maridos também nas atividades públicas. Para as
mulheres também eram reservados o papel de mãe. Ser uma boa mãe e esposa, eram
os requisitos fundamentais para a realização feminina. Mulheres solteiras,
mulheres viúvas, mulheres sem filhos ou empreendedoras, eram vistas como uma ameaça
para a ordem social, eram olhadas com suspeita. Os perigos afetavam inclusive a
saúde mental, poderiam tornar-se presas fáceis para doenças que acometiam o
feminino como a histeria. Vale ressaltar que nas primeiras décadas do século
XX, Natal era uma cidade pequena e que estava absorvendo as influências
culturais de uma sociedade burguesa. Isso incluía além dos elementos
materiais, as normas de comportamento. Nesse período a cidade ganhou áreas
urbanizadas, linhas de bondes, teve o comércio intensificado e ganhou também
clubes, teatros e cafés. Era a presença de uma elite natalense e seus modos
burgueses, elite que estava se legitimando, fazendo suas reivindicações, e equipando
a cidade de uma tecnologia inspirada nos grandes centros europeus.
Viúva, dama da
sociedade, esposa sem filhos, administradora, mulher reservada, monstro, foram
inúmeras as faces de Amélia. O que ficou de todas essas facetas foi a presença
dessa mulher lendária na memória e na história da Cidade do Natal.
Referências:
D´INCAO, Maria
Ângela. Mulher e família burguesa. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das mulheres no Brasil. 10 ed.
São Paulo: Contexto, 2011.
MEDEIROS, Ariane
Liliam da Silva Rodrigues. Amélia Duarte
Machado, a Viúva Machado: a esposa, a viúva e a lenda na Cidade do Natal
(1900-1930). Natal, RN, 2014 (Dissertação de mestrado).
SEREJO,Vicente; LIMA, Argemiro. Dona Amélia Duarte, Dona Amelinha: a Viúva Machado. O Poti.Natal, 10, dez, 1978.
VIVEIROS, Paulo
Pinheiro de. História da Aviação no Rio
Grande do Norte.Natal: Ed.Universitária,1974.
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