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Com quantos pontos se faz um Grande Ponto?




Toda cidade possui seus mapas desenhados em papéis e eletronicamente, atualmente também em diferentes aplicativos digitais. Além dos diferentes meios e dos traços demarcados por gráficos, calculados geometricamente, as cidades são espaços de constante criação de cartografias. Cada habitante ou grupo desenha um mapa através de suas memórias, são mapas afetivos e construídos com vivências. Em cada canto da cidade, em “cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras” (CALVINO, 1990, p. 14-15), existe um passado a ser narrado, como pensou Italo Calvino.


Em Natal, capital do Rio Grande do Norte, uma delimitação espacial está envolta em saudade: o Grande Ponto.



A Rua João Pessoa e o estabelecimento Grande Ponto. Autoria do fotógrafo Jaeci. Foto do CD Natal 400 anos de História, turismo e emoção, 1999.


O Grande Ponto seria um trecho do Bairro da Cidade Alta em Natal. Alguns lembram que existiu um estabelecimento com esse nome que teria aberto suas portas na década 1920 e que teria fechado nos anos 1950 (SOUZA, 2008, p. 180-181). O estabelecimento funcionava na esquina da Avenida Rio Branco com a Rua João Pessoa. Com o fechamento do espaço, o nome transferiu-se para uma zona que compreende as principais ruas do Centro de Natal. De acordo com Luís da Câmara Cascudo, o café ou mercearia Grande Ponto “foi denominação daquela esquina e aquela esquina se tornou imóvel e catalisadora nas memórias” (CASCUDO, 1981, p. 9-11).

A nomenclatura Grande Ponto aparece em muitos textos de memórias, alguns tentam delinear a zona. De acordo com Joanilo de Paula Rêgo o Grande Ponto seria fusão “ou a ‘ménage à trois’ da Rio Branco, Princesa Isabel e João Pessoa, justamente o epicentro do H, que forma o lendário, maldito, tradicional, eterno e imortal Grande Ponto”. Uma área delimitada ao Sul pela Nova Catedral, ao Norte pela Praça Padre João Maria, ao Leste pelo Café São Luiz e a Oeste pelo cinema Rex que ficava na Avenida Rio Branco (RÊGO, 1981, p. 14-19). Alexandro Gurgel escreveu que o trecho, compreende “o cruzamento da Rua João Pessoa com a Rua Princesa Isabel, estendendo-se, culturalmente, da calçada do Café São Luiz ao Sebo Vermelho, e ainda com seus tentáculos alcançando o Beco da Lama, reduto etílico do Grande Ponto” (GURGEL, 2002, p. 163).  Para o Padre Agustin Salom SJ, o Grande Ponto “se articula ao redor do eixo que vai desde a Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, caminha pela praça do Pe. João Maria, Praça Presidente Kennedy, até a Nova Catedral” (SALOM SJ, 2002, p.160).

Nos anos 1950 e 1960, o Grande Ponto teve seu período áureo, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, quando o comércio se intensificou ainda mais no Bairro da Cidade Alta, em detrimento do desenvolvimento comercial vivenciado por Natal com a presença norte-americana. O Grande Ponto era centro comercial, cultural e de lazer. Aglutinava cinemas, bares, sorveterias e cafés. Também era local de estabelecimento das principais casas bancárias, sedes das rádios, clubes de futebol e consultórios médicos, bem como trecho de convergência para as linhas de bondes. As ruas do Grande Ponto também serviam para eventos religiosos e carnavalescos da cidade.

A partir da década de 1970, o significado do bairro passou por mudanças com a ampliação da cidade para outras zonas. Além disso, houve o crescimento do turismo, o aumento da população, o aparecimento de espaços como os Shoppings, na década de 1980.  A Cidade Alta também passou por transformações, foi tomada por um comércio popular e informal, fazendo com que houvesse alterações em suas configurações.

Quer fazer um pequeno percurso em pontos que faziam parte do Grande Ponto? Aqui iremos destacar alguns. É claro que você que vivenciou recordará de outros tantos espaços. Aqui percorrerá por apenas uma mostra do que foi esse Grande Ponto de tantos e tantos pontos.



1. Cinema Nordeste e Sorveteria Oásis. Os dois estabelecimentos ficavam na Rua João Pessoa. O cinema foi inaugurado em 1958 de acordo com Itamar de Souza. A Sorveteria Oásis funcionava como anexo do Cinema Nordeste (SOUZA, 2008: 181-182).

2. Natal Clube, O Zepelin e Praça Presidente Kennedy. O Natal Clube (1906 a 1968) foi um clube composto por associados. Nele se realizavam bailes, jogos, carnavais e organizavam-se piqueniques.  Era um clube restrito, frequentado por políticos e outras figuras de relevo social na cidade. Para Cascudo o Natal Clube era o “maior centro social da cidade” (CASCUDO, 1981:9-11). A Banca de Revistas O Zepelin foi inaugurada em 1939, funcionava na calçada do Natal Clube, manteve-se aberta durante a década de 1950, vendia revistas, charutos e jornais, tornou-se um ponto de informação na cidade (SOUZA, 2008: 172-173). Na banca, além de vender revistas e jornais, os clientes podiam efetuar os pagamentos das contas de luz e telefone. O Zeppelin ainda realizava entregas de refrigerante e champagne para festas (A REPÚBLICA, 07.06.1950, p. 3). A Praça Presidente Kennedy ainda existe, mas na época ficava em frente ao Natal Clube. Foi também um local de interação social e lazer. Na década de 1960, ficou conhecida como Praça das cocadas, pois no local havia assentos em forma de cubos que passaram a ser conhecidos como “cocadas”, nome que se transferiu ao grupo de frequentadores da Praça que discutiam sobre temáticas como literatura e cinema (SILVA, 2002, p. 116).  Em busca de uma nomenclatura para a praça, na década de 1950, os jornais anunciaram um desejo de que fosse chamada Praça Grande Ponto (A REPÚBLICA, 08.03.1959, p. 4). Na década de 1960 o nome foi finalmente definido e continua até os dias atuais. O monumento em homenagem ao Presidente norte-americano foi inaugurado em 1965 (SOUZA, 2008, p. 183).

3. Cinema Rex. O cinema de intensa movimentação foi inaugurado em 1936 e fechou em 1972, funcionava no atual local das Lojas Insinuante (SOUZA, 2008, p. 172).  O bairro não parava nem em finais de semana, o Rex exibia sessões inclusive aos domingos (A REPÚBLICA, 13.05.1950, p. 2). Além do Cinema Rex havia na Avenida Rio Branco a Livraria Universitária aberta em 1959 (SOUZA, 2008, p. 175) e o Instituto de Música, local onde se reunia a Academia Histórico Cultural, um grêmio estudantil.  (GÓES, 2002: 71).

4. Café Grande Ponto. De acordo com Cascudo era ali que se cruzavam os bondes elétricos vindos dos bairros de Tirol, Petrópolis, Ribeira e Alecrim (CASCUDO, 1981:9-11). No local, atualmente está localizado o Edifício Amaro Mesquita. O Café Grande Ponto foi inaugurado na década de 1920 e fechou no início da década de 1950, entre 1951 e 1953 (SOUZA, 2008: 180).

5. O Bar e Confeitaria Cisne.  O estabelecimento foi uma confeitaria na parte dianteira e ao fundo possuía um serviço de bar no local mais reservado (SODRÉ, 2002: 110). Era um espaço composto por mesas de tampo de mármore e cadeiras de ferro (FONSECA, 2002: 125).  Ficava quase no final da Rua João Pessoa, número 162. Foi espaço frequentado por eruditos como Cascudo e Veríssimo de Melo (MELO 2002: 127). Também eram lugares de interação na mesma rua, a Confeitaria Helvética, Café Maia, Casa Vesúvio, Acácia Bar, Confeitaria de Aracati e o Restaurante Dois irmãos (MOURA JÚNIOR, 2002: 55-56).

6. Café O Botijinha, local composto por mesas de metal e mármore e com serviço de garçons (GALVÃO, 2002: 97). Era um café conhecido por funcionar vinte e quatro horas, era uma “central de boatos e verdades, partida das aventuras boêmias que nasciam dali” (DUARTE, 1981: 12-13). No andar superior do prédio do café funcionava a Sede do Santa Cruz Futebol Clube (MOURA JÚNIOR, 2002: 56).

7 e 8. Café São Luiz. Em suas primeiras instalações, o espaço foi fundado como Posto de Degustação do Café São Luiz, (ponto 7). Foi inaugurado em 1953, mas mudou-se em 1959, para a Avenida Princesa Isabel (SOUZA, 2008: 181-202). Para Moacyr de Góes, o “Café São Luiz e a Confeitaria Cisne tinham públicos cativos” (GÓES, 2002: 72). O ponto 8 se refere ao local das instalações do Café São Luiz desde a década de 1960 até a atualidade. Lembrando o Café São Luiz, Onofre Júnior escreveu que “políticos, funcionários públicos, profissionais liberais, estudantes” conversavam no lugar, e ainda “sempre arriscam um olho no mulherio que vai passando, vindo das compras” (ONOFRE JÚNIOR, 2002: 149). O Café São Luiz ainda mantém suas portas abertas, já nas décadas de 1980 foi considerado como um herdeiro do Grande Ponto. Em 2013 reabriu suas portas, totalmente reformado. O velho café demonstrou ainda sua vitalidade, por meio da iniciativa de João Antônio Cruz Neto. Sobre o Grande Ponto e o São Luiz, em texto de 1981, José Luiz Silva ressaltou que o Café São Luiz, seria “Tão importante quanto o Café de La Paix de Paris, onde Sartre diariamente respirava seu existencialismo” (SILVA, 1982: 21-22). O lugar resistiu ao tempo por se tratar de um símbolo de memória, um lugar de valor para os frequentadores e para a cidade, um local que torna ainda possível o contato com um pouco da essência do Grande Ponto.


Referências:


CASCUDO, Luis da Câmara. Grande Ponto. In. ______. Grande Ponto: laboratório de criatividade, contos, poesias, ensaios, depoimentos, por Luís da Câmara Cascudo e outros. Natal: Ed. Universitária, 1981.

CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

DUARTE, Ticiano. Território do menino e do homem. In. CASCUDO, Luis da Câmara. Grande Ponto: laboratório de criatividade, contos, poesias, ensaios, depoimentos, por Luís da Câmara Cascudo e outros. Natal: Ed. Universitária, 1981.

FONSECA, Talvani Guedes da. Grande Ponto, 22 de novembro de 1963. In: GARCIA, Eduardo Alexandre de Amorim. Cantões, Cocadas, Grande Ponto Djalma Maranhão. Natal: Edições Galeria do Povo, 2002.

GALVÃO, Cláudio. Cinco pequenas evocações de um ponto que era grande. In: GARCIA, Eduardo Alexandre de Amorim. Cantões, Cocadas, Grande Ponto Djalma Maranhão. Natal: Edições Galeria do Povo, 2002.

GARCIA. Eduardo Alexandre de Amorim. Coração da cidade amada. In: _______ Cantões, Cocadas, Grande Ponto Djalma Maranhão. Natal: Edições Galeria do Povo, 2002.

GURGEL, Alexandro. Faces do Grande Ponto. In: GARCIA, Eduardo Alexandre de Amorim. Cantões, Cocadas, Grande Ponto Djalma Maranhão. Natal: Edições Galeria do Povo, 2002.

GÓES, Moacyr de. Lembranças do Grande Ponto. In: GARCIA, Eduardo Alexandre de Amorim. Cantões, Cocadas, Grande Ponto Djalma Maranhão. Natal: Edições Galeria do Povo, 2002.

MIRANDA, João Maurício Fernandes de. Evolução Urbana de Natal em 400 anos (1599-1999). Natal: Prefeitura de Natal, 1999.

MEDEIROS, Augusto B. Além das Xícaras: a Construção do Café São Luiz como Lugar de Memória em Natal (1950-1980). Natal, RN: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2013. (Dissertação de Mestrado).

MELO, Protásio. A Velha Confeitaria Cisne. In: GARCIA, Eduardo Alexandre de Amorim. Cantões, Cocadas, Grande Ponto Djalma Maranhão. Natal: Edições Galeria do Povo, 2002.

MOURA JÚNIOR, Manoel Procópio de. O Grande Ponto. In: GARCIA, Eduardo Alexandre de Amorim. Cantões, Cocadas, Grande Ponto Djalma Maranhão. Natal: Edições Galeria do Povo, 2002.

Natal 400 anos de História, turismo e emoção, 1999.

ONOFRE JÚNIOR, Manoel. O Grande Ponto. In: GARCIA, Eduardo Alexandre de Amorim. Cantões, Cocadas, Grande Ponto Djalma Maranhão. Natal: Edições Galeria do Povo, 2002.

RÊGO, Joanilo de Paula. O Grande Ponto à meia-noite. In. CASCUDO, Luís da Câmara. Grande Ponto: laboratório de criatividade, contos, poesias, ensaios, depoimentos, por Luís da Câmara Cascudo e outros. Natal: Ed. Universitária, 1981.

SALOM SJ, Pe. Agustin Juan Calatayud y. Grande Ponto? In: GARCIA, Eduardo Alexandre de Amorim. Cantões, Cocadas, Grande Ponto Djalma Maranhão. Natal: Edições Galeria do Povo, 2002.

SILVA, Falves. A Geração das Cocadas. In: GARCIA, Eduardo Alexandre de Amorim. Cantões, Cocadas, Grande Ponto Djalma Maranhão. Natal: Edições Galeria do Povo, 2002.

SILVA, José Luiz. Na Calçada do Café São Luiz. Natal: Gráfica União, 1982.

SODRÉ, Leonardo. Um ponto que era grande In: GARCIA, Eduardo Alexandre de Amorim. Cantões, Cocadas, Grande Ponto Djalma Maranhão. Natal: Edições Galeria do Povo, 2002.

SOUZA, Itamar de. Nova História de Natal. 2 ed. Natal: Departamento Estadual de Imprensa, 2008. 

Jornais:

A REPÚBLICA,Natal, Sábado, 13.05.1950, ano LXI, nº. 107, p.2.

A REPÚBLICA. Natal, Quarta-feira, 07.06.1950, ano LXI, nº. 130, p. 3.

A REPÚBLICA, Natal, Domingo 08.03.1959, ano. LXIX, nº 185, p.4.








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