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O Som da Mudança


          Um homem se levanta durante um debate informal sobre casamento. Ele o defende com unhas e dentes, ignora toda crítica e palavra contra e simplesmente erradica todos que discordam. Ao sentar-se, muitos o aplaudem, e ele agradece com um aceno de cabeça e um sorriso presunçoso.
          Duas semanas depois, sua esposa pede divórcio. Diz que não aguenta mais suas manias narcisistas, suas atitudes grosseiras, que um apartamento longínquo da cidade não era o que queria, que ele não lembra o sacrifício que ela teve que fazer; o chamou de arrogante, insensível, autoritário. Mas principalmente deu ênfase em uma questão:
Você nunca muda! Eu, que me senti tão culpada quando percebi o quanto havia mudado. Eu, que me esforcei pra parecer a mesma mulher com quem você se casou. Mas basta! Não é uma coisa ruim, eu gosto de quem eu sou hoje, e não vou deixar você, com seus pensamento concretos, com toda sua inércia e comodismo me impedir de ser feliz, me impedir de amar a mim mesma. Eu necessito mais mudança.
           E com isso, ela se foi. Mas esse fato já é história das redondezas. A Senhora Nobre, sim, a vizinha do casal já-não-tão-casado, testemunhou tudo:
           Há um pergolado, entende, aqui em minha casa, e como estamos no térreo, tudo que é dito em cima vem pra baixo - disse a Sra. Nobre, com um brilho malicioso nos olhos. Mas eu não fico por aqui pra escutar, não, não mesmo, foi um com-ple-to acidente, veja bem, saí pra comprar o pão do Seu André, sempre sai quentinho às 6 horas da noite, eu sempre digo, "Seu André, isso é um horário muito noturno pra uma senhora como eu", mas ele nunca me escuta!  cruzou os braços sobre o peito, um gesto de proteção involuntário.
           Senhora Nobre?  eu gentilmente chamei para lembrá-la da entrevista. A senhora falava da discussão da Família Cor--
           SIM, sim, isso mesmo, completo acidente, não, incidente que falam. Bem, ela deu um chute na bunda dele, pra encurtar a história, sim, foi isso. Muito braba aquela mulher, não concordei com uma palavra só que ela esfregou na cara dele.
           Hum, a senhora discorda, ahn?
           Isso mesmo! Discordo, não era direito dela, veja bem, eles se mudaram pra cá em 1987, eram bem daquela época mesmo, mas não tão jovens. Havia o filho deles, como era mesmo o nome...
          Rapidamente revejo meu bloco de notas e descubro:
           Ah, a senhora fala do Daniel, o mais velho, trabalha como engenheiro na empre--
           SIM, sim, Daniel, mas não interessa o que ele faz hoje, era uma criança, entende? Eles foram pais muito tarde, a criança não veio em boa hora, se é que você me entende  dando uma piscadela na minha direção.
           Hum, por que a senhora acha isso, Senhora Nobre?
           Criança, não escutou nada que eu disse? Per-go-la-do  declarou, apontando para fora da sala de estar.
          Segui a direção de seu dedo, e quase me ceguei com a claridade daquela manhã. Ainda tentando fazer sentido do que eu havia escutado, deduzi:
           A senhora escutou toda discussão que tiveram.
           Isso mesmo! - declarou com felicidade imperturbável.
           Hum, não era bem isso que eu estava procurando.. Então quer dizer que na maioria do tempo era somente isto que faziam? Discutir?
           Não na maioria do tempo, mas o suficiente para eu lembrá-los desta maneira, entende? Mas diga, jovem, o que quis dizer com isso, hein, de que isso  ela fez um amplo gesto se referindo à própria sala - não era o que você estava procurando?
           Hum, me nomearam como responsável pela liturgia do funeral, e eu pensei que seria uma boa ideia saber como ela era, ao mesmo um pouco...
           Funeral? Como?!
           Exato!  expressei meu alívio. Não há como falar de alguém que morreu sem saber muito como era. A Senhora Márcia vivia viajando, eu não a via muito. Ninguém da família fala dela sequer
 mencionava um ao outra, eu tive que pesquisar pra descobrir sobre o Daniel...
           Márcia.. faleceu?
          — E eu..  interrompi mentalmente meu discurso habitual de reclamação da biblioteca local para me focar na senhora velhinha em frente de mim. Hum, a senhora não sabia?
          Desde que havia chegado em sua casa, a Senhora Nobre ficou muda. Apenas baixou a cabeça e cerrou os olhos.
         — Márcia era... não era daqui. Nunca foi. Por isso foi tão injusto quando terminou, entende?  ela falava as mesmas coisas de antes, mas sem nenhum tom de piada. Havia apenas sincera tristeza em sua voz.
           Hum, eu imagino - falei, sem ter mais nada na cabeça pra consolar a senhorinha sentada em sua cadeira de balanço. "Bom para as costas e os joelhos!", disse, antes de se sentar em uma e me oferecer a outra. Olho agora para outras duas cadeiras, afastadas num canto. Eram cadeiras normais, com um acolchoado mínimo e um espaldar reto. Aquelas eram cadeiras sérias, nas quais deveríamos estar agora. Em vez disso, eu fiz uma senhora velhinha chorar e se sacudir, graças ao balanço da cadeira.
           MAS  abruptamente despertou de seu transe  ele deve saber!
           Ele, Senhora Nobre? De quem a senho--
          Ela apontou para cima, e me calei no mesmo segundo.
          O que eu não havia mencionado para ela era que, num pergolado como aquele, o som repercutia para as duas direções. "Tudo que é dito em cima vem pra baixo", havia dito. Bem, o contrário também ocorria...


          Sentado em seu lugar próximo à janela, ele ouvira tudo. Apagou seu charuto e pos-se a andar pelo apartamento. Ele lembrava de quando havia brincado com Márcia em relação à senhora Nobre:
           Ela escuta tudo, Márcia, e um dia você vai se dar mal por isso!
           Pois que escute! Um dia você dirá que eu não disse tal coisa, e então aí sim, terei meu gravador pessoal, também conhecida como a senhora do cochicho  ele riu nesse momento , pra esfregar na tua cara que eu pedi duas dúzias de ovos, e NÃO duas caixas!
           Certeza que foram duas caixas, querida, certeza disso!
           Ah, você que apostar?
          Aquela noite ficou na lembrança marcada como "momento bom". Eram bem raros, mas sempre bem-vindos.
          Ele parara de chofre quando ouviu a senhora Nobre dando adeus e insistindo que um pacote de biscoito fosse levado na viagem de volta. Decidiu no mesmo segundo. Agarrou o casaco, chaves, carteira, o celular que ainda não descobrira muito bem como usar e deu as costas para a sala escura.
          "Se Márcia pode fazer isso.. Também farei."
          Com o pé fora do apartamento, deu adeus à mesmice, procurando, pela primeira vez desde que conhecera Márcia, a mudança.
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