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A Origem Divulgada De Éris Castell


          Eu não sou uma pessoa da manhã. Ao menos, é isso que minha mãe diz, e ela geralmente é a pessoa certa pra julgar isso. Mas ela não é. Minha mãe, quero dizer.
          Donna me criou desde que eu tinha 10 anos, e nessa idade a maioria das crianças já tem uma ideia formada sobre adultos. Então, quando os carinhas do serviço social me disseram que ela era a única parente viva que eu tinha, eu fiquei preocupada.
          Do escritório da Senhora Trunchbull, que era como eu a chamava mentalmente, eu podia ver pelo abre e fecha frequente da porta da recepção a mulher da qual ela estava falando. Uma professora de física, de acordo com Trunchbull. Ela vestia um jeans surrado e uma jaqueta preta que ela continuava a alisar, embora não ajudasse em nada com as sobras do tecido. O cabelo ruivo estava amarrado em um rabo de cavalo, e algo me dizia que ela tentara vários penteados para enfim desistir e vir completamente crua. Eu não notei nenhum brinco ou joia, e eu jamais contaria aquele relógio Casio como um acessório aceitável.
          Então, pela quinta ou sexta vez, eu me virei para a senhora Mostarda (e este é o verdadeiro nome dela) e perguntei sobre minhas opções restantes. Orfanato seria uma boa.
           Éris [eu realmente não sei de onde ela tirou essa ideia de que já podíamos nos tratar pelo primeiro nome], querida [ou por isso], sua tia é a pessoa mais indicada para ter sua guarda. Dê uma chance e, quem sabe, vamos ver o que acontece entre vocês duas  ela juntou as mãos contra o peito volumoso, obviamente excitada com algo que eu podia apenas descrever secretamente como fútil.
           Além disso, você poderá estar no meu painel das famílias realizadas, sim?
          Ela sorriu exibindo o tratamento dentário precário ao qual tinha direito. Eu havia notado aquele mural estupidamente dourado seis semanas antes, quando entrei naquele escritório espalhafatoso pela primeira vez. O choque ainda não havia sido amortecido. Na verdade, a sala em si era simples. A presença daquela mulher completamente sem tato com moda a tornava outra coisa.  O passatempo preferido da agente psicopata à minha frente era colecionar famílias socialmente aceitáveis. E pelo brilho dos sorrisos, aposto que as carteiras eram tão chamativas quanto.
           Vê, esses aqui são os Danvers, empresário americano que se casou com uma comissária de bordo paulista, e eles decidiram adotar, veja só! Ah, sim, é o Gustavo e a Marta, sempre vem aqui, ainda estão na transição de casas, entende, com o pequeno Henrique, mas nada que não se resolva com um terapeuta, ah, sim, a Laura você já conhece, não é? E aqui tem os...
          A senhora Mostarda continuou falando sobre suas rasas realizações, mas eu não escutava mais. Pulei da cadeira sorrateiramente e marchei para a recepção. Em algum momento, meu diadema caiu pelo corredor, mas eu não me importei. Eu estava de braços cruzados e com o olhar mais duro que uma garota loira de dez anos poderia ter. Então, fiz minha declaração antes que dona Agente Feliz aparecesse:
           Eu terei um quarto só meu, não me importo se não tiver cama, eu sou o tipo de pessoa que se contenta com quatro paredes, uma porta com chave, alguns livros sobre mitologia e bastante comida. Estou de boa se terei que dividir um banheiro, mas nem pense em deixar algo pra trás que não vale a pena ser visto. Eu tenho aulas de piano todas as quintas e sábados, e preciso de carona, então, pode ser?
          Finalmente parei para pegar um pouco de ar, e esperei a resposta dela.
          Donna pareceu completamente assustada quando eu comecei a falar, provavelmente pelo fato de que ela havia me visto pela última vez quando eu não tinha dentes. Ou uma atitude arrogante, qualquer um dos dois.
          Só depois dessas observações mentais percebi que ela derramou um pouco da água que estava bebendo.
           Eu tenho grega e egípcia, mas sei tanto sobre Thor quanto os escritores da HQ dele  ela murmurou.
          Eu fiquei momentaneamente estática. Algo que não acontece com frequência.
          Por causa disso, naquele momento, eu soube. Donna não seria um problema, ou um quebra-cabeça a resolver. Enquanto enxugava a si mesma com a manga da jaqueta, eu percebi que ela não era material para estrela-dourada-no-quadro-dourado. E foi isso, creio eu, que me fez dar uma chance ao tempo.
          Mas isso foi sete anos atrás. Nesta manhã, ao olhar através da revista Psicologia Hoje, a mulher que mereceu ser chamada por mim de mãe parece, em especial, preocupada.
           Eu não vou explodir a cabeça ou algo parecido, já pode parar de checar. Foi apenas uma investigação de praxe, e não foi nada demais  eu comentei, enquanto olhava feio para o café. [Como alguém pode gostar disso?]
          Aquilo não pareceu tranquilizá-la.
           Eu apenas odeio acordar para tomar meu chá de boldo e...
           O boldo acabou faz três dias, eu anotei na geladeira.
           ... encontrar sua cama vazia, sem ao menos um bilhete...
           É uma pena que crimes não tem hora marcada.
           ... e ainda deixou a cama desforrada.
           Como se eu  me interrompi e olhei para ela. Ambas começamos a rir.
           Okay, okay  concedeu. — Apenas me acorde, eu não me incomodo.
          Eu acenei, porém mentalmente pensando no sono pesado dela. Talvez não fosse preciso mentir.
          Olhei para o relógio quando terminei de tomar o café não-café da manhã: sete e treze.
           Tem que reportar, não é?
          Acenei novamente, pensando na complicação da burocracia. Pela primeira vez em muito tempo, agradeci silenciosamente o fato de não trabalhar para o governo ou qualquer outra entidade terráquea; o tédio iria me matar.
          Mas provavelmente seria nada parecido com o que eu havia visto poucas horas atrás.
          Enquanto pensava nisso, ouvi uma batida na janela. Sete e quinze, sempre pontual.
          Suspirei, dei um beijo na testa de Donna e fui abrir a porta pro meu chefe.
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