Já se tinha feito mais de
duas noites e ela ainda estava ali, paradinha, em silêncio, sabendo que se
fizesse algum barulho maior do que a batida de seu coração, isso iria atrair um
animal feroz e faminto. Por assim ficou até que uma coruja piou três vezes em
algum lugar da floresta, uma raposa selvagem se aproximou, cheirou o matinho e
estranhou o que estava ali.
- Oh! Que surpresa, um
filhotinho de humano, mas nenhum humano por perto. – e mostrando um terrível
sorriso – como seria trágico se um animal selvagem surgisse de repente e
devorasse você por completo! – e depois disto continuou farejando todos os
cheiros exalados por ela, pois todos sabemos que humanos tem cheiros estranhos.
No entanto quando ele lambeu
o rosto dela para sentir se seu gosto era realmente tão bom quanto dizem os
animais das profundezas da floresta, algo inesperado aconteceu. Orfelia
gargalhou ao ser lambida e agarrou o nariz úmido da raposa com suas mãozinhas.
Isso surpreendeu a raposa selvagem de tal maneira que ela pulou longe e pulou
alto, fazendo com que Orfélia gargalhasse mais e suas risadas ecoaram pela
floresta assustando qualquer entidade maligna que estivesse ali.
Mais três dias tiveram que passar para
que a Wyrd começasse a agir de suas formas misteriosas. E como o destino foi surpreendente.
Os primeiros flocos de neve já tinham começado a cair e o chão da floresta já
parecia um tapete branco. Todas as árvores já tinham perdido suas folhas no
outono, exceto aquelas que nunca perdiam suas folhas e o vento frio já
soprava, muitos animais preferiam se encolher em suas tocas quentinhas para
sobreviver a mais um inverno. O silêncio do inverno é tão absoluto que só é
quebrado pelo som do vento do norte que não sabe soprar.
É neste cenário que aconteceu. Ao longe
latidos de cães e trombetas quebram o silêncio.
Depois de algum tempo os latidos ficam
mais altos e alguns uivos caninos ecoam por toda floresta. Uma Javali tinha
acabado de rasgar um cão ao meio, para logo em seguida continuar em sua fuga
dos caçadores, a fúria flamejava em seus olhos e seu sangue ferve no frio do
inverno, ela irá matar tudo e a todos que cruzarem em seu caminho, assim era a
vida quando a caçada começa.
E assim, quase enlouquecida pela fúria,
a javali sem filhotes, com muitas cicatrizes, manca, faltando um olho e de
pelagem embebida em sangue, cruzou o destino da pequena e frágil humana que
ainda resiste ao inverno. Já há muito esse momento estava decretado pela Wyrd.
A javali olha para a filhotinha de
humano e sente o cheiro viu. A ânsia de mais sangue em suas presas a faz
esquecer que está sendo caçada, ela esburaca o chão com seu fucinho e patas
para só depois partir para cima da pequena humana. No meio do caminho, a terrível
javali empacada, pois debaixo das folhas mortas em que Orfélia estava, surge
uma grande serpente verde jade de olhos escarlates. A serpente fintou os olhos
do javali em movimento para fazê-la parar ali mesma.
- Saia de meu caminho, senhor, meus
assuntos não são contigo. É com este filhote de humano.
A serpente apenas mostra sua língua
bifurcada e a agita no ar. Os olhos vermelhos sem pálpebras da cobra continuam
fixas.
- Se não sair de meu caminho, juro por
todos aqueles que já matei e que ainda matarei, que te levarei também!
A serpente se enrosca em Orfélia, mas de
uma maneira que não a machuca nem a sufoca, apenas a acalenta, como quem dizendo
tente. E de algum lugar da floresta
silenciosa surge uma confluência de sons que lembram uma voz macia, mansa e
arrastada como o farfalhar das muitas folhas que já não mais existem.
–
Eu conheço seu destino nobre senhora dos
javalis, crescesse mais da conta a custa daqueles que cresceram de seu próprio
ventre, você não pertence a este lugar, sua alcova é a floresta profunda,
aquela que sufoca toda esperança. Mas és uma tola. Brincar de matar humanos mortais,
não sabe o quanto é fugaz?
Ainda sob a hipnose do senhor das
serpentes a javali recua um pouco, consternada em perceber que o olhar da
serpente descobre ou atribui destinos.
- Não sabe o que fala. Serpente tola –
falara esbravejado – nenhum humano mortal ou entidade me parou, já fui caçado
por inúmeros seres inúmeras vezes em inúmeros mundos. Por que logo agora eu teria
medo? Vou lhe provar algo que não é seu destino, vou matar aquele que me caça.
E quando isso acontecer, você será o próximo. – conseguido o que queria, a
serpente apenas balança sua língua e volta a se esconder nas folhas.
O que a javali não sabia era que Ghardor
era o caçador desta vez, muitos bardos em muitas histórias cantam a lenda de Ghardor,
o pai dos Dragões, que o seu rastro é tão ou mais devastador do que a criatura
que ele caça. Muitas vezes Ghardor toma a forma de humano ruivo, sempre forte e
imponente, para passar despercebido de todos, para testar seus filhos, para
saber se o mundo mortal ainda é mortal para ele.
Não demorou muito para seus cães
encontrarem a javali monstruosa, ela ficou ali parada, bufando incessantes
jatos de vapor a sua volta, derretendo toda a neve. Mas só quando Ghardor
apareceu portando uma lança longa, foi que realmente o gelo começou a derreter.
A javali não esperou e partiu para cima dele, mas Ghardor apenas posicionou sua
lança para que a Javali fizesse todo o trabalho por si só.
No final a Javali sangrou e gritou, a
lança não partiu nem rachou e só se desfez em chamas, quando a magia da caçada
terminou. O caçador parou ali e admirou sem desdém para o incrível animal, para
só depois perceber que existe algo a mais ali, um choro de criança nova vinda
de algum lugar. A serpente há muito já tinha ido embora, seu trabalho já havia
terminado. Ghardor olhou e investigou o monte de neve, para sua surpresa, lá
estava ela. Uma criancinha ruiva de olhos azuis perdida na floresta em pleno
inverno. Ninguém sabe ao certo o porquê de Ghardor ter sentido uma empatia
grande por aquele bebezinho, alguns dizem que foi porque Orfélia foi a única
mulher que não gritou ao ser abraçada por ele, pessoas maldosas. Alguns outros
dizem que foi porque ela é ruiva e seu futuro é ser muito bonita, pois dá para
ver pelo formato das mãos, e Ghardor adora mulheres bonitas, mesmo que isso
seja para um futuro distante, afinal de contas, um dragão tem quase uma
eternidade pela frente. Alguns ate dizem que ele viu as marcas da benção da
rainha da corte esmeralda e temeu deixar tal criança ali sem nem um amparo. Mas
como sou eu o bardo desta vez, então é minha responsabilidade cantar o que
realmente aconteceu.
A pobrezinha da Orfélia ate então não
sabia o que era morte, nem dor, nem sofrimento, nunca passara por essas três
coisas antes. Não até agora, pois ao mesmo tempo ela viu a Dor, a Morte e o
Sofrimento andando de mãos dadas bem ali, e apenas por isso, chorou e chorou
muito por começar a crescer e a perceber como o mundo era cruel. E só parou de
chororò quando Ghardor a pôs no braço sem saber o que fazer. Ele estava ali,
todo melado de sangue segurando um bebê que não parava de chorar, e nem por um
instante passou por sua cabeça todas as besteiras que outros bardos cantam.
O que aconteceu foi mais surreal,
Ghardor cantou pela segunda vez...
Paro só um instante minha história para
lhes dizer, quando Ghardor cantou pela primeira vez, foi Uma Canção de Fúria e Fogo, uma canção para despertar toda a vida
congelada deste mundo, foi uma canção violenta que fez todos os vulcões
entrarem em erupção, fez toda a água entrar em ebulição, fez a vida surgir mais
uma vez. Dizem os magos por ai, que quando um dragão verte fogo por sua boca de
tal maneira que destrói cidades inteiras, ele apenas entoa as primeiras duas
linhas desta canção.
Também dizem por aí que Ghardor só sabe
duas canções, uma delas é Um Canção de
Fúria e Fogo, que eu acabei de lhe dizer, e a outra é uma musica misteriosa, a primeira ele cantou para todos do mundo, mas esta segunda é A Canção do Mistério, ele a cantou
apenas para uma pessoa, não com o intuito de imbuir vida e caos, mas sim para
acalentar um coração pequenininho, foi a canção mais linda de todos os tempos,
pois ela foi cantada para sarar a Dor, para expulsar o Sofrimento e para
afastar a Morte, essa canção recitada baixinho apenas para uma única criança
que nunca iria se lembrar dela ouvir. Essa foi a primeira e ultima vez que
Ghardor cantou e amou uma mulher.
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